O dever moral de estudarmos teologia
Existe um senso de responsabilidade para estudarmos a teologia? Quem precisa de teologia? São perguntas que precisam ser respondidas.
Cada ser humano é um ser moral. Todos têm o dever de estudar e crer nos ensinos da Escritura Sagrada. John L. Dagg comenta que as faculdades morais com as quais o homem foi dotado adaptam-no para um estado de sujeição ao governo moral. Nossas mentes foram constituídas de tal maneira que somos capazes de perceber uma certa qualidade moral nas ações, podendo nós aprová-las ou desaprová-las. A consciência de termos feito o que é direito oferece-nos um de nossos mais elevados prazeres; a angústia do remorso, por causa de alguma maldade praticada é tão intolerável como qualquer outro sofrimento ao qual o coração humano é susceptível.
A nossa consciência exerce um certo governo moral, recompensando-nos ou castigando-nos pelas nossas ações, de acordo com o seu caráter moral. Grande parcela de nossa felicidade depende da aprovação daqueles com quem estamos associados. E assim, encontramos o governo moral tanto fora como dentro de nós mesmos; a cada ponto, em nossas relações com outros seres inteligentes, sentimos as restrições desse império moral. Onde se acham os limites do governo moral? Eles precisam ser tão extensos quanto as nossas relações com outros seres morais e tão duradouros como a nossa própria existência. (…) Na qualidade de seres religiosos, procuremos compreender as verdades da religião. Na qualidade de seres dotados de imortalidade, esforcemo-nos por nos familiarizar com a doutrina da qual depende a nossa felicidade eterna. Tenhamos o cuidado para não aceitar essa verdade com um frio entendimento, mas de tal maneira que o seu pode renovador jamais cesse de atuar em nossos corações. [1]
Não podemos ignorar que existe um disseminado sentimento negativo contra o estudo sistemático das Escrituras. Em alguns redutos evangélicos esta mentalidade é difundida e confundida com a verdadeira espiritualidade. Uma espiritualidade irracional, em que o Espírito Santo somente age onde a mente não atrapalha! Isto é um dos resultados pós-modernos do existencialismo, que é uma reação tardia ao racionalismo. Este “sentir” e “experimentar” tem se tornado o critério da verdade, que passa a ser subjetiva e não verificável. Assim, a sociedade pós-moderna tem seu cenário preparado por esta sutil mentalidade. Este sentimentalismo rejeita qualquer elaboração doutrinária que dependa da lógica, como se esta fosse algo puramente carnal, e não uma dádiva de Deus, para o correto raciocínio das matérias sagradas. John R.W. Stott escreveu que “crer é também pensar”.
O presbiteriano escocês James Orr, seguindo este mesmo raciocínio, há tempos observa que todos devem estar cientes de que há nos dias de hoje um grande preconceito contra doutrina – ou, como é muitas vezes chamada – “dogma” – na religião; uma grande desconfiança e aversão ao pensamento claro e sistemático a respeito de coisas divinas. Os homens preferem, não se pode deixar de notar, viver em uma região de nebulosidade e indefinição com relação a esses assuntos. Querem que seu pensamento seja fluido e indefinido – algo que possa ser mudado com os tempos, e com as novas luzes que eles acham estarem constantemente aparecendo para iluminá-los, continuamente adquirindo novas formas e deixando o que é velho para trás.[2]
O preconceito contra a dogmática não acabou apesar de James Orr ter feito esta afirmação há um século atrás. A verdadeira espiritualidade é ensinada em alguns círculos evangélicos como se fosse algo despido de teologia. Teólogos recentes como Stanley J. Grenz e Roger E. Olson também fazem o mesmo desabafo realizamos numerosos retiros, seminários e oficinas para cristãos leigos e pastores e notamos que estão abertos para o estudo sério e para a reflexão sobre a Palavra de Deus à luz de temas atuais. Verificamos, porém, um fenômeno estranho: entre as mesmas pessoas famintas de entendimento e que contribuem com descobertas maravilhosas alastra-se a frieza tão logo se pronuncie a palavra “teologia”. [3]
Mas, qual é a resposta para a fatídica questão: quem precisa de teologia? Embora a resposta possa parecer um tanto que estranha, ela é simples: todos! Não somente cristãos, mas os incrédulos, ateus, agnósticos, e demais adeptos de qualquer religião não cristã! Todos precisam ouvir de forma inteligente e coordenada a clara e vigorosa pregação do Evangelho. A teologia trabalha com a sistematização da revelação registrada: a Escritura Sagrada. Todos têm o dever e a necessidade de aprender do único e verdadeiro Deus. O Senhor se revela de modo geral a todos (Sl 19:1-6).
Mas, Ele também se revela de modo especial, através das Escrituras (Sl 19:7-14). Entretanto, este segundo modo de Deus se dar a conhecer não deve ser restrito aos que crêem nEle. A principal diferença destes dois modos de Deus se revelar, é que a revelação especial é proposicional, enquanto que a geral não o é, mas o conteúdo da revelação, independentemente do seu modo, tem o propósito de que todos conheçam o seu Ser, e tremam diante da Sua majestade. Todos precisam de uma cosmovisão que seja fiel àquilo que a Bíblia, que é a Palavra de Deus diz.
Curiosamente esta rejeição da teologia não torna o indivíduo isento de ser um teólogo! A diferença não é entre teólogos e não-teólogos, mas entre teólogos acadêmicos e pragmáticos, teólogos coerentes e outros inconsistentes. O fato de um animal não reconhecer o seu próprio reflexo diante de um espelho, não significa que aquilo que vê seja outro animal! Do mesmo modo, alguém que despreza a “teologia” não anula o fato que ele seja um teólogo! Por isso, todos são teólogos. Grenz e Olson nos adverte que “ninguém que reflita sobre as perguntas cruciais da vida escapa de fazer teologia. E qualquer um que reflita sobre as questões fundamentais da vida – incluindo perguntas sobre Deus e nossa relação com ele – é teólogo”. [4] Neste sentido até mesmo os ateus são teólogos, por desejarem negar esta relação através dum raciocínio falacioso sustentando que Deus não existe.
Alguns cristãos crêem que a sua sinceridade os livrará do erro doutrinário. Freqüentemente tenho a impressão de que os crentes em geral consideram a sinceridade de atitude como sendo mais importante do que o conteúdo da crença. Não se deprecia a necessidade de ser sincero; nenhuma pessoa sensata crê que a sinceridade deva substituir o conhecimento da verdade, pois elas não estão em contradição. O resultado desastroso de se crer numa falsidade, não importando quão sincera seja a pessoa, é que quanto maior for o grau da sinceridade, mais horrendas serão as conseqüências. Toda crença tem conseqüência, e uma convicção errada sustentada com sinceridade trás dolorosas seqüelas.
Esta rejeição em alguns cristãos existe porque os seus pastores implantam-na.
Felizmente, temos pastores defendendo a necessidade de se estudar sistematicamente teologia com a igreja, mas que por falta de sabedoria, ou preparo adequado, usam uma linguagem técnica pesada e indigerível para a maioria das pessoas. Acabam exercendo o seu pedantismo teológico criando um enorme abismo entre os crentes e o estudo proveitoso da teologia. O pedantismo deve ser rejeitado como uma manifestação do orgulho (1 Co 8:1), mas o saber responsável da teologia é uma necessidade vital para a saúde da igreja.
Mas, por outro lado há pastores que após o término do seu curso teológico, abandonam o estudo sério. Outros tomam uma atitude pior, desprezam todo estudo na pseudopiedade de uma versão distorcida do “somente a Escritura”. Acerca disto Lewis S. Shafer comenta que como bem poderia um médico descartar os seus livros de anatomia e terapêutica assim também o pregador pode rejeitar os seus livros sobre Teologia Sistemática; e visto que a doutrina é a estrutura óssea da verdade revelada, a sua negligência deve resultar numa mensagem caracterizada por incerteza, imprecisão e imaturidade. [5]
Aos presbíteros docentes, Deus os chamou para serem pastores-mestres (Ef 4:11). Pastorear não é somente visitação! É zelar da igreja e alimentá-la com a substanciosa Palavra de Deus. É nutrir o rebanho com alimento que procede da “boca de Deus” (Dt 8:3). Todo trabalho pastoral depende direta e indiretamente do correto manuseio da Palavra de Deus. Entretanto, há pastores que embora não desprezam a teologia, falam dela como se fosse um acessório do ministério pastoral e da igreja, que pode ser facilmente ignorado, ou usado só quando for realmente necessário! Essa dicotomia não somente é estranha, mas confusa. O fato de não usarmos a linguagem técnica teológica, não significa que estamos com isso abandonando a teologia.
O apóstolo Pedro nos ordena “santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós “(1 Pe 3:15). Segundo este texto, a formulação teológica em seu dever moral deve indispensavelmente conter:
1. santificação (santificai a Cristo)
2. submissão (Cristo como Senhor)
3. coerência no todo (em vosso coração)
4. diligência (sempre preparados)
5. raciocínio [coordenado] (para responder)
6. experiência (há em vós)
A teologia é uma exigência inevitável para se exercer a inteligência cristã. A teologia tem o objetivo de fornecer a relação sistematizada de informações extraídas da Bíblia. A verdade deve sempre ser tratada com um raciocínio coordenado para produzirmos respostas claras e inteligíveis, porque crer é também pensar. O filósofo cristão Gordon H. Clark observa que o inquiridor pergunta por uma razão, ou, como podemos dizer, ele pergunta pela lógica de nossa esperança; e precisamos estar preparados para dar a lógica e razão da nossa fé. Não somente conceder tal réplica, mas manter com santa dignidade e importância a mensagem cristã, e as perguntas que nos são feitas, tornando-as uma oportunidade que não podem ser desperdiçadas. [6]
A teologia é o resultado confessional de nossa cosmovisão. Cada cristão deve ser capaz de expor com síntese, mas com conteúdo, o que crê. Como entendemos e interpretamos a realidade ao nosso derredor? Posso ter certeza do que conheço? De que modo aceitamos os acontecimentos que produzem o sofrimento? Que significado tem a minha existência?
Vigiemos contra o nosso sutil orgulho. O saber é para servir a Deus e edificar a Igreja. O princípio “maior é o que serve” continua irrevogável. A falta de humildade demonstrará uma teologia enferma (1 Co 8:1-3). Não podemos esquecer que o Deus imutável ainda resiste ao soberbo, mesmo em sua forma pedante. Se a nossa teologia não produz humildade e santificação, certamente ela não procede de Deus e não edificará a sua Igreja.
Uma teologia que não pode ser orada, é uma teologia impossível de ser praticada, e que não deve ser ensinada. Estudar a sistematização das doutrinas da Escritura Sagrada deve resultar em santificação. John L. Dagg observa que o estudo da verdade religiosa deveria ser empreendido e continuado com base no senso de dever, tendo como escopo o aprimoramento do coração. Uma vez aprendida, essa verdade não deveria ser guardada em uma estante, como se fosse um objeto de pesquisa; mas deveria ser implantada profundamente no coração, onde o seu poder santificador pode ser sentido. Estudar teologia com o propósito de satisfazer à curiosidade ou de preparar-se para uma profissão, seria um abuso, uma profanação daquilo que precisa ser considerado como extremamente santo. [7]
Todo o cuidado com o odium theologicum ainda é pouco! Ao adotar uma posição o estudante de teologia não deve alimentar um sentimento de inimizade ao tratar as demais opiniões contrárias. O sumário de toda sistematização da Escritura foi concedida pelo Senhor Jesus quando disse: “amarás ao Senhor, teu Deus… e o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12:29-31). Qualquer teologia que se desvie deste princípio, errou o alvo!
NOTAS:
[1] – John L. Dagg, Manual de Teologia (São José dos Campos, Ed. Fiel, 1989), p. 4-5.
[2] – James Orr, Sidelights on Christian Doctrine (New York, AC. Armstrong and Sons, 1909), p. 3
[3] – Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, Quem Precisa de Teologia? (São Paulo, Ed. Vida, 2002), p. 9
[4] – Stanley J. Grenz & Roger E. Olson, Quem Precisa de Teologia?, p. 14
[5] – Lewis S. Shafer, Teologia Sistemática (São Paulo, Ed. Hagnos, 2003), vol. 1-2, p. 5
[6] – Gordon H. Clark, Peter Speaks Today – A Devotional Commentary on First Peter (Philadelphia, Presbyterian and Reformed Publishing CO., 1967), p. 118
[7] – John L. Dagg, Manual de Teologia , p. 1.Rev. Ewerton B. TokashikiPastor na 1ª IPB em Porto Velho – ROProfessor de Teologia Sistemática no SPBC-RO